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Conceito de espécie

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Conceito de espécie: 

Nosso objetivo, aqui, não é fazer uma discussão aprofundada sobre este tópico, mas, apenas, fazer algumas considerações sobre as espécies e estabelecer um conceito delas que sirva às nossas discussões no contexto da introdução à sistemática.

Conceituar espécies não é uma tarefa fácil e a literatura biológica está cheia de conceitos alternativos. O mais conhecido deles continua a ser o conceito biológico, segundo o qual "espécies seriam conjuntos de populações* cujos indivíduos são capazes de cruzar entre si, deixando descendentes férteis, e que são isolados reprodutivamente de outras populações." Apesar de continuar a ser uma conceito popular, as críticas a este conceito vem se acumulando continuamente. A primeira dessas críticas é que este conceito não se aplica a espécies que não se reproduzem sexuadamente. Inicialmente este problema era reconhecido apenas para grupos como bactérias e alguns táxons de plantas. Ao longo do século XX, contudo, tornou-se claro que espécies assexuadas são relativamente comuns também entre animais, mesmo de grupos de organismos complexos como artrópodes e lagartos. Este conceito também não admite a existência de espécies de origem híbrida, o que também tem se mostrado relativamente comum, principalmente em plantas. Outra crítica que se pode fazer é que barreiras intrínsecas* à hibridização* entre espécies, geralmente evoluem quando espécies proximamente relacionadas (e, portanto, genéticamente semelhantes) são simpátricas* (o que favorece o encontro e cruzamento entre machos e fêmeas de espécies diferentes) e os indivíduos híbridos* têm sua reprodução ou sobrevivência prejudicadas. Sendo assim, machos e fêmeas de espécies proximamente relacionadas, mas alopátricas*, nem sempre chegam a desenvolver mecanismos de isolamento reprodutivo e podem ser capazes de produzir descendência fértil, caso se encontrem. Em resumo, o conceito biológico de espécies não é suficientemente amplo para incluir todas as espécies que compõem a biota* terrestre.

Mas se o conceito biológico não é satisfatório, que conceito poderíamos usar em seu lugar?

Antes de responder esta pergunta, vamos discutir alguns problemas relacionados aos conceitos de espécie:

Definição x reconhecimento das espécies 

Existem dois problemas associados aos conceitos de espécies. O primeiro deles é o problema conceitual propriamente dito: um bom conceito deve ser capaz de definir entidades que sejam reais na natureza (no contexto da sistemática moderna, nos interessa delimitar entidades que se comportem como unidades evolutivas). Assim, por exemplo, já ressaltamos que o conceito biológico não é capaz de incluir todas as entidades biológicas que reconhecemos como espécies "legítimas". O segundo é o problema operacional: precisamos reconhecer, na natureza, as entidades que definimos com nosso conceito. Por exemplo, se aceitarmos o conceito biológico, como podemos ter certeza de que um macho e uma fêmea semelhantes, encontrados em momentos diferentes na natureza, são ou não capazes de cruzarem um com o outro e produzirem descendentes férteis?

Neste ponto, é preciso lembrar que a natureza, e a evolução como um processo natural, não funcionam com a finalidade de facilitar (nem dificultar) nosso entendimento. Assim, precisamos atacar os dois problemas de forma independente: Primeiro, é preciso encontrar uma forma de entender e, assim, definir o que sejam as unidades evolutivas que pretendemos chamar de espécies; só depois, então, podemos nos preocupar com o reconhecimento destas entidades na natureza e, neste momento, temos que nos conformar com o fato de que isto nem sempre vai ser fácil. Inverter a ordem desses fatores (buscando conceitos que facilitem a tarefa de reconhecermos espécies na natureza) pode nos levar a conceituar espécies de forma a que elas não representem unidades evolutivas (ou todas elas). 

Natureza das espécies

Espécies tem sido conceituadas de duas formas principais: como "classes" e como "indivíduos". Classes são agrupamentos definidos pelas características dos indivíduos que os compõem. Os elementos químicos são um bom exemplo de classes (Wiley & Lieberman, 2011): para que um átomo pertença a uma dessas classes (Ferro ou Nitrogênio, por exemplo) basta que ele tenha um determinado número de prótons no núcleo; não importa se ele foi formado a partir da fusão de átomos menores ou da fissão de átomos maiores; não importa que ele tenha se originado no sistema solar ou em algum outro sistema estelar ou outra galáxia. O conceito tipológico de espécies (aquele empregado pelos naturalistas e taxonomistas até o início do século XX) é um exemplo de conceito de espécies como classe. Segundo este conceito, as espécies são definidas por um conjunto de características (originalmente considerado como sua "essência", no sentido de Platão e Aristóteles). Assim, qualquer indivíduo portador deste conjunto específico de características pertenceria a esta espécie.  

Indivíduos, por outro lado, são definidos por sua própria existência, independente de outros indivíduos. Eles têm um início (ou "nascimento"), um período de existência (ou "vida") e um fim (ou "morte"). Note-se que um indivíduo pode mudar suas características ao longo de sua existência, sem deixar de ser ele próprio. Nós somos um exemplo disto: alguém que visse fotos nossas com 1, 10, 30 e 70 anos de idade não teria como reconhecer que todas elas fossem fotos do mesmo indivíduo. Assim, conceitos de espécies como "indivíduos" incorporam a dimensão temporal e acomodam as mudanças evolutivas (anagênese) que as espécies sofrem ao longo de sua existência.

O conceito evolutivo de espécies

O conceito evolutivo de espécies foi formulado pelo mastozoólogo e paleontólogo George G. Simpson (por exemplo, Simpson, 1971), da seguinte forma: Espécies são uma sequência de populações ancestrais-descendentes (linhagem) que evolui independentemente de outras linhagens e que tem destino e tendências evolutivas próprias.

O conceito evolutivo considera as espécies como indivíduos. Elas têm um "nascimento" - o evento de cladogênese* em que elas se originam; uma "vida" - o período de sua existência em que as populações ancestrais-descendentes se sucedem; e uma "morte" - sua extinção ou o evento de cladogênese em que elas deixam de existir para originar espécies descendentes. Além disto, as espécies assim definidas têm uma existência independente de outras linhagens equivalentes, elas evoluem independentemente de outras espécies - o que significa dizer que as novidades evolutivas (mutações, recombinações gênicas) não são compartilhadas entre elas e, assim, elas preservam suas próprias tendências e destinos evolutivos.

Como todo outro conceito de espécies, o conceito evolutivo tem problemas operacionais. Teoricamente, espécies evolutivas se originam no momento em que dois conjuntos de populações de uma espécie se separam, num evento de cladogênese. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando uma barreira geográfica se forma, isolando duas porções da área original de ocorrência de uma espécie (evento de vicariância*). Se, a partir daí, o fluxo gênico entre os conjuntos de populações isolados não ocorrer mais, então esses dois conjuntos passam a se comportar como unidades evolutivas independentes e podem ser considerados espécies distintas. Neste momento, temos, então, dois problemas operacionais: 1) Espécies recém isoladas podem ser idênticas - como distingui-las? e 2) Dois conjuntos de populações recém-isolados só poderão ser considerados duas espécies distintas se nunca mais vier a ocorrer, entre eles, um fluxo gênico regular, capaz de mantê-los como uma única unidade evolutiva.

A solução do primeiro problema - distinção de espécies de origem recente sem ou com pouquíssima divergência genética e/ou morfológica (espécies crípticas) é um dos principais problemas de estudo da sistemática atual. O que se tem descoberto é que há uma enorme quantidade de espécies morfologicamente idênticas (ou quase) que tem nos passado desapercebida. Métodos integrativos, que empregam, em conjunto, dados morfológicos, moleculares, comportamentais etc, têm possibilitado desvendar essa diversidade oculta. 

A solução do segundo problema exigiria que fôssemos capazes de prever o futuro - o que, obviamente, é impossível. Por exemplo, até há algum tempo atrás, a Floresta Amazônica e a Floresta Atlântica tinham áreas de contato e muitas espécies eram comuns aos dois ecossistemas. Hoje, contudo, os dois ecossistemas estão isolados e podemos nos perguntar: Os conjuntos de populações de uma espécie florestal que habitem a Floresta Amazônica e a Floresta Atlântica, e que não mantém mais fluxo gênico, podem ser considerados espécies distintas, mesmo sendo morfologicamente indistinguíveis? Se pudermos prever que esses dois ecossistemas não voltarão a se encontrar, antes de que esses dois conjuntos de espécies se diferenciem o suficiente para que seus indivíduos não possam mais intercruzar, então a resposta seria "sim". Mas podemos fazer esta previsão? A resposta, então, depende de uma dose de bom senso, mas provavelmente será subjetiva e sujeita a erros. A questão que fica é: se temos um problema operacional que nos impede de reconhecer espécies evolutivas em algumas circunstâncias, isto invalida o conceito em si?

Como dissemos, acima, não é objetivo desta página, fazer uma discussão ampla e aprofundada do tema "conceito de espécies". Os interessados podem ler mais um pouco aqui, e procurar a bibliografia pertinente para obterem informações sobre esses e outros conceitos de espécie atuais e suas virtudes e defeitos.

Neste site, usaremos o termo espécie, considerando seu conceito evolutivo.

Vocabulário

  • Alopátricos: Que não ocorrem em uma mesma área geográfica.

  • Biota: A totalidade dos seres vivos que ocorrem em um determinado lugar (região, ecossistema, continente, planeta etc).

  • Cladogênese: "Origem de ramos"; é o processo em que uma espécie ancestral se divide para dar origem a duas espécies descendentes; especiação.

  • Intrínseco: Próprio. Barreiras intrínsecas, portanto, seriam características morfológicas ou mecanismos comportamentais dos indivíduos de uma espécie que impedem a cópula com indivíduos de espécies diferentes, ou mecanismos genéticos ou fisiológicos que impeçam a fertilização dos óvulos, caso a cópula ocorra, ou o desenvolvimento de embriões, caso óvulos sejam fertilizados em decorrência dessas cópulas.

  • Hibridização: Processo reprodutivo que leva à produção de híbridos.

  • Híbrido: Indivíduo produzido a partir do cruzamento de macho e fêmea de espécies (ou variedades) diferentes.

  • População: Dentro da biologia e, especialmente, nos campos da genética e da biologia de populações, bem como na biologia evolutiva e da conservação, população é um conjunto de indivíduos de mesma espécie, que habita uma dada região e cujos indivíduos são efetivamente capazes de se encontrarem para o acasalamento. Uma espécie pode ser constituída por uma única ou por várias populações. Neste último caso, indivíduos é mantido pela migração ocasional de indivíduos de uma população para outra.

  • Simpátricos: Que ocorrem em uma mesma área geográfica.

  • Vicariância: Divisão da área de distribuição geográfica de uma espécie, pela interposição de uma barreira geográfica, isolando diferentes conjuntos de populações da espécie, que estavam originalmente em contato. A origem dessas barreiras pode se dar pela elevação de uma cadeia de montanhas, formação de um mar continental, formação de um deserto por mudanças climáticas, etc).

Bibliografia

Simpson, G.G. 1971. Princípios de Taxonomia Animal. (Tradução). Lisboa, Calouste Gulbenkian.254 p.

Wiley, E. O. & Lieberman, B. S. Phylogenetics - The theory of phylogenetic systematics. 2ed. Hoboken, John Wiley & Sons. 406 p.

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