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Classificação biológica

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Classificação Biológica

​A classificação dos seres vivos é um tema central na sistemática e, mais ainda, na taxonomia. Este termo tem dois significados inter-relacionados: no primeiro, classificação é o ato de organizar os seres vivos em táxons, de acordo com critérios pré-estabelecidos. No segundo caso, a classificação seria o resultado do ato de classificar – um sistema de organização dos seres classificados. 

 

As classificações biológicas cumprem algumas funções:

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  • Organizar o nosso conhecimento sobre os seres vivos em um sistema geral de armazenamento e busca de informações. Os nomes dos táxons são palavras-chave que nos permitem acessar o conhecimento disponível sobre grupos específicos de organismos (os táxons). Quando um biólogo (ou qualquer outro cientista que trabalhe com organismos vivos) descobre algo novo sobre uma espécie ou outro táxon, ele publica esses novos conhecimentos, associados ao nome do táxon a que eles se referem, em um artigo científico; coisas como: "Um novo produto metabólico de Eucalyptus alba", "Comportamento de nidificação de Gnorimopsar chopi", "efeitos do veneno de espécies de Tityus sobre células cancerígenas" etc. A informação científica sobre qualquer organismo, dessa forma, é produzida de forma fragmentada e para que possamos reuni-la de acordo com nossas necessidades, usamos o nome do táxon como palavra chave para acessar o conhecimento existente sobre ele. Faça a seguinte experiência: Entre no "Google Acadêmico"; e copie na caixa de entrada o nome de um táxon de seu interesse (sugestões: Panthera onca, Peumus boldus, Tityus, Ascaris). Veja quantos links para textos técnicos e científicos sobre esses táxons esta busca vai recuperar para você. Os nomes científicos, então, permitem-nos encontrar informação associada precisamente a um determinado táxon.

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  • Sintetizar o nosso conhecimento sobre os seres vivos. O nome de cada táxon representa, e traz à mente daqueles que conhecem a classificação, uma série de características compartilhadas pelos membros do táxon, da mesma forma que podemos substituir a descrição "veículo automotor de quatro rodas, de cabine fechada, com assentos, destinado ao transporte de um pequeno número de passageiros" pelo termo "automóvel", sem que se percam as características gerais dos automóveis. Assim, "Mammalia" traz à nossa mente a ideia de animais vertebrados, quadrúpedes, com o corpo recoberto de pelos e dotado de glândulas mamárias, diafragma, três ossículos no ouvido médio etc etc".

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  • Facilitar a comunicação dos conhecimentos sobre os seres vivos. Sintetizando nosso conhecimento sobre os organismos num número limitado de palavras (os nomes dos táxons), que são de uso amplo na comunidade internacional, a classificação torna mais eficiente a transmissão desse conhecimento entre as pessoas.

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  • Permitir-nos fazer predições sobre os organismos classificados e suas características, tornando o uso de nosso conhecimento sobre eles mais eficiente. Boas classificações permitem que façamos predições acuradas sobre os organismos e nos facilitam lidar com eles em nosso benefício (na prevenção contra agentes infecciosos, na busca de substâncias com propriedades farmacêuticas etc).
    Note que a previsão diz respeito a organismos que já estão classificados; e que as classificações não nos permitem, por exemplo, prever a existência de espécies ainda desconhecidas pela ciência, nem o surgimento de espécies que ainda não existam. As previsões que elas nos permitem fazer seriam, por exemplo: 1) dado que uma espécie esteja incluída em Mammalia, podemos inferir que ela tenha coluna vertebral, pelos, glândulas mamárias etc; 2) dado que uma determinada planta produz um determinado composto químico, podemos inferir que outras espécies do mesmo gênero tenham uma grande chance de também produzir aquela substância.

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Padrão, generalização, previsibilidade, classificação

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É possível que uma das características que possibilitaram a vida em nosso planeta (pelo menos, tal como a conhecemos) tenha sido o fato de que ele se rege de acordo com padrões regulares. Assim, o movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo define um período regular de 24 horas, dividido em dois períodos – um claro e o outro escuro (dia e noite); o movimento de translação que a Terra faz em torno do sol define as estações do ano – períodos em que os dias são mais longos ou mais curtos, as temperaturas mais altas ou mais baixas, e as chuvas mais frequentes e intensas ou mais esparsas e leves. Em torno de padrões como estes é que a vida se organiza – e nós organizamos nossa vida.

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O desenrolar da vida se dá por meio de resposta dos seres a estímulos, e envolve mecanismos mais ou menos complexos de “predição”. Por exemplo, em uma região de estações climáticas bem definidas, as plantas respondem à variação do período de luz dos dias para delimitarem suas várias fases fenológicas*: floração, frutificação, crescimento vegetativo, perda de folhas, etc. A sincronização dessas fases com as estações do ano permite, por exemplo, que uma semente, ao cair no solo, tenha calor e umidade suficiente para germinar, enraizar, crescer e acumular reservas antes da chegada do próximo período seco e frio, garantindo assim a sua sobrevivência. Neste sentido é que a sincronização é um processo “preditivo” (neste caso, obviamente inconsciente, fixado geneticamente por meio do processo de seleção natural, ao longo da evolução de cada espécie). Assim, a planta tem um mecanismo “automático” de “prever” qual a melhor época para florescer.

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Entre os animais, os processos de predição variam desde mecanismos rigidamente definidos geneticamente, até processos mais flexíveis e complexos que envolvem a aprendizagem. Os processos geneticamente fixados envolvem comportamentos estereotipados*, que se repetem sempre da mesma forma, toda vez que um determinado estímulo é apresentado. Assim, por exemplo, alguns organismos buscam abrigos escuros, sempre que atingidos pela luz. No outro extremo, agricultores aprendem que estações secas e chuvosas se sucedem mais ou menos regularmente e semeiam suas plantas alimentícias nos períodos que maximizam a probabilidade das sementes germinarem, provendo uma boa colheita meses depois. Obviamente, os padrões não são perfeitos (porque influenciados pela ação de muitas variáveis) e, às vezes, os agricultores perdem suas plantações por atrasos ou antecipações inesperadas das chuvas. De qualquer forma, a agricultura seria impossível se a distribuição das chuvas se desse inteiramente ao acaso e fosse, portanto, completamente imprevisível.

 

Podemos imaginar, agora, um animal de vida mais ou menos solitária percorrendo seu ambiente. Ele precisa reconhecer algumas propriedades básicas nos objetos (inanimados ou animados) que o cercam. Por exemplo, aqueles objetos dos quais ele pode se alimentar e aqueles que representam ameaças à sua sobrevivência (predadores, por exemplo). Para um mamífero, este reconhecimento vem, em parte, de respostas geneticamente definidas a estímulos (por exemplo: um macho reconhece uma fêmea no cio pelos feromônios* sexuais que ela produz e que agem diretamente no sistema nervoso dele, disparando uma série de comportamentos reprodutivos) e, em parte, do aprendizado (um pássaro que tente se alimentar de uma lagarta impalatável*, aprende que lagartas com um determinado padrão de forma e coloração não devem ser comidas). Desta forma, podemos imaginar que nosso mamífero adulto tenha, gravado em seu cérebro, um sistema simples de classificação, em que objetos sejam agrupados, segundo propriedades importantes para sua sobrevivência, em: presas, predadores, parceiros sexuais, abrigos, tóxicos etc.

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Podemos imaginar que algum ancestral remoto nosso, um primata que vivesse da coleta de frutos, folhas, raízes e sementes, e da caça de pequenos animais, como insetos e pequenos vertebrados, tivesse o mundo assim classificado em sua mente simples: frutas comestíveis ou que causam diarreia; cogumelos comestíveis ou que causam alucinações e dores de cabeça; folhas tenras facilmente digeríveis ou folhas duras e indigestas; animais agressivos ou inofensivos, etc. Uma parte do conhecimento que permitiu que ele distribuísse os objetos (inanimados e animados) do seu ambiente entre essas várias classes teria origem genética; outra parte (em nosso caso, talvez a maioria) teria sido adquirida por aprendizado, a partir da experiência própria ou pela observação direta da experiência de outros indivíduos (como os comportamentos exibidos por seus pais enquanto buscavam alimento). Assim, são relativamente poucas as fontes de informação que ele pode usar para classificar os elementos de seu ambiente para, com base nesta classificação, fazer predições que aumentem sua expectativa de vida, e estas fontes de informação estão limitadas aos indivíduos e fatos que ocorrem à sua volta, durante seu período de vida.

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Em algum momento da evolução humana, contudo, nossos antepassados começaram a desenvolver uma forma de comunicação bem mais complexa que aquelas empregadas pelos indivíduos de outras espécies: a linguagem falada. As línguas de cada grupo humano têm vocábulos para designar todos os objetos (inanimados ou vivos, materiais ou imaginários) e ações com as quais esses grupos tiveram alguma experiência (isto já foi dito de forma mais bonita por outras pessoas - veja um exemplo aqui) Como enfatizou Simpson (1971), nossas línguas são sistemas de classificação complexos, em que cada palavra designa uma classe de objetos ou ações ou qualifica estes objetos ou ações: 'Árvore' é uma classe de objetos fotossintetizantes dotados de raízes, tronco e copa; 'matar' é uma classe de ações que produz a morte de um organismo; 'bonito' qualifica objetos de uma classe previamente definida, distinguindo um subgrupo dentro dela – árvores bonitas, em oposição a árvores feias, por exemplo. A linguagem é, portanto, um sistema de classificação – o nosso sistema de classificação mais básico e, talvez, mais complexo. Este sistema de classificação não é mais um sistema essencialmente individual, mas um sistema  coletivo: os indivíduos, através de sua linguagem, compartilham um mesmo sistema de classificação. Isto possibilita, que cada um de nós, ao vagar pelo seu ambiente, carregue consigo uma nova ferramenta preditiva, uma classificação de todos os elementos de nosso ambiente, construída não apenas com base em nossas experiências e observações pessoais, mas também com base nas experiências e observações de todos os indivíduos da sociedade em que vivemos, incluindo aí os inúmeros indivíduos de um número incontável de gerações passadas. Não é exagero supor que este sistema de classificação (nossa linguagem) e o poder de predição que ele confere a cada ser humano, e às sociedades humanas como um todo, seja um dos principais fatores que permitiram à nossa espécie alcançar a dominância que ela exerce sobre os ambientes terrestres.

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Classificações biológicas

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A língua de um determinado grupo humano registra todos os objetos e ações com os quais aquele grupo já interagiu. Desta forma, a língua de cada sociedade humana traz, dentro de si, uma classificação dos seres vivos com os quais aquela sociedade convive ou conviveu. Por exemplo, a língua tupi, segundo Ihering (1930), possuía duas palavras largamente utilizadas para designar as abelhas: 'yra', que designava a colmeia de abelhas (e, também, o mel que ela armazenava) e 'tub', que se refere a cada abelha individualmente. A partir desses nomes gerais, vários nomes específicos eram compostos. Por exemplo: tub-una (abelha preta), tub-juba (abelha amarela), ira-puam (abelha de ninho redondo) e ira-xaim (abelha de ninho crespo). Interessantemente, a ideia do nome binomial para as espécies, uma das grandes contribuições de Lineu ao nosso sistema atual de classificação, pode ser encontrada na língua guarani. Dennler (segundo Simpson, 1971) notou que os guaranis conferiam nomes binomiais aos animais, em que o primeiro nome era inclusivo (como o gênero de Lineu) e o segundo restritivo (como o epíteto* específico de nossa classificação). Ele exemplificou isto com o nome 'tatu', que designa um conjunto de espécies animais proximamente relacionadas, que são distinguidas por nomes específicos compostos (tatu-açu, tatu-aíva, tatu-para, tatu-etê, tatu-íra, tatu-peba, tatu-xima etc). 

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Considerando que as nossas línguas são sistemas de classificação tão complexos e que elas incluem os seres vivos, podemos nos perguntar: Por que precisamos de uma classificação biológica?

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Existem várias razões. Podemos mencionar:

 

1) Muitas línguas são faladas por diferentes povos no mundo, e cada uma dessas línguas confere um nome diferente a um mesmo tipo de organismo (lobo, loup, lupo e wolf, por exemplo, considerando apenas algumas línguas europeias). Na realidade, em um país extenso como o Brasil, o mesmo organismo pode receber nomes distintos na mesma língua, em diferentes regiões. Por exemplo, pernilongo, muriçoca e carapanã são nomes empregados em regiões diferentes para designar os mosquitos hematófagos; as libélulas são chamadas, também, de cavalinho-de-judeu, lavadeira e lava-bunda...

 

2) O inverso também ocorre e organismos diferentes podem receber o mesmo nome, em regiões diferentes. Assim, ao chegarem no Brasil, os portugueses usaram nomes de animais que eles conheciam em outras regiões para denominar animais brasileiros que eles acharam semelhantes. A onça pintada, por exemplo, foi chamada, inicialmente, de 'tigre' e, até hoje, em algumas regiões do interior do Brasil ainda é chamada assim. No Brasil, usamos o nome 'lobo' para designar o guará (ou lobo-guará). O ouriço-caixeiro é outro exemplo. Ele é frequentemente chamado de porco-espinho, nome de um animal europeu completamente diferente (exceto pelo fato de terem, ambos, o corpo coberto de espinhos). 

 

3) Outra razão é que, fora dos meios científicos, o homem tende a nomear apenas aqueles seres que apresentam algum interesse prático/econômico ou representam algum perigo para si. Desta forma, temos dezenas de nomes para designar cada uma das muitas raças de uma única espécie doméstica - o cachorro, mas chamamos todas as milhares de espécies de baratas, simplesmente de baratas... Além disto, nos meios não científicos, as pessoas, em geral, não são capazes de distinguir e, portanto, nomear, todas as espécies de cada um dos grupos de seres vivos. 

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Por essas razões, a linguagem é um sistema pouco preciso de classificação para finalidades específicas e o aumento do nosso conhecimento sobre os organismos vivos exige sistemas de classificação que sejam, ao mesmo tempo, abrangentes (incluindo todos os organismos vivos) e específicos (distinguindo cada um dos milhões de 'tipos' desses organismos). 

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Um número infinito de classificações poderia ser proposto para os organismos. As plantas, por exemplo, podem ser (e foram) classificadas de acordo com suas utilidades agronômicas, farmacêuticas, industriais etc. Estas classificações, embora úteis para as finalidades para as quais são criadas, também têm utilidade limitada. Assim, uma classificação farmacêutica teria pouca utilidade para um agrônomo. Para que os conhecimentos obtidos sobre os organismos nas várias áreas do saber possam ser integrados em um único corpo e estejam disponíveis para um número maior de pessoas, é preciso que haja um sistema universal de classificação biológica, preferencialmente, baseado em algum princípio biológico unificador.

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O desenvolvimento da classificação biológica ao longo dos tempos é discutido nos seguintes temas: "A classificação biológica da Antiguidade a Lineu", "Evolução e Classificação" e nos temas relativos às escolas contemporâneas da sistemática.

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Vocabulário

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  • Estereotipado: Fixo, sem variação.

  • Epíteto: Termo que se adiciona a um nome para qualificá-lo. Na classificação biológica é empregado para designar a palavra adicionada ao nome de um gênero para compor o nome binomial de uma espécie.

  • Fenologia: Ramo da ciência que estuda as relações entre fenômenos biológicos e a sucessão das estações climáticas. Na botânica, o estudo da sucessão de fenômenos que ocorrem ao longo do desenvolvimento de um organismo.

  • Feromônio: Substância produzida por um indivíduo e que vai desencadear respostas fisiológicas ou comportamentais em outro indivíduo. Exemplos de feromônios seriam: feromônios de atração sexual; feromônios de alarme e feromônios de agregação.

  • Impalatável: Desagradável ao paladar.

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Bibliografia

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  • Ihering, H. 1930. Biologia das Abelhas Melíferas do Brasil (tradução do original publicado em alemão em 1903). São Paulo, Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo. 

  • Simpson, G.G. 1971. Princípios de Taxonomia Animal. (Tradução). Lisboa, Calouste Gulbenkian.

Este tema continua em:
"O Desenvolvimento da Sistemática da Antiguidade a Lineu".
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