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tAXONOMIA NUMÉRICA (fenética)

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ESCOLAS CONTEMPORÂNEAS DA SISTEMÁTICA:
A TAXONOMIA numérica ou fenética

Em meados do século XX, a sistemática entrou em crise, devido ao fato das questões abordadas por ela não serem (e, frequentemente, poderem) ser estudadas de acordo com o paradigma* dominante do "método científico" (veja mais sobre este paradigma, aqui). Isto fez com que a sistemática passasse a ser considerada como uma ciência de segunda categoria, perdendo espaço nas instituições de pesquisa. Assim, na medida em que iam se aposentando, sendo demitidos, ou morrendo, os taxonomistas passaram a ser substituídos por pesquisadores de outras áreas emergentes* da biologia, como geneticistas, fisiólogos, ecólogos e, mais recentemente, biologistas moleculares. A escola da Taxonomia Evolutiva, em especial, era foco de muitas críticas, sendo a principal delas a falta de métodos explícitos e objetivos para a reconstrução das relações filogenéticas. Como as hipóteses de filogenias não eram construídas com base em métodos explícitos, não havia, também, como discuti-las ou testá-las de forma objetiva (veja no link acima, para 'o método científico' e, nessa página, o link para 'o dragão em minha garagem', sobre hipóteses não falseáveis). O critério para se escolher entre opiniões distintas era o critério da autoridade - valia mais a opinião daquele que era reconhecido como a maior autoridade em um determinado grupo taxonômico (enquanto, em outras áreas da ciência, a opinião mais valiosa era aquela corroborada pelas evidências mais fortes). 

 

Na década de 1950, duas escolas distintas de pensamento surgiram na sistemática: a Taxonomia Numérica e a Sistemática Filogenética. Os proponentes destas escolas reconheciam as fragilidades dessa disciplina e aceitavam as críticas feitas com relação à falta de objetividade e rigor da taxonomia, mas procuravam ressaltar, também, a importância desta ciência para o estudo dos seres vivos. Essas duas escolas postulavam que a sistemática deveria buscar maior rigor, desenvolvendo métodos explícitos e objetivos que melhorassem a qualidade de seus trabalhos e resgatassem seu prestígio. Os métodos e princípios propostos por elas, contudo, eram muito diferentes e, em muitos casos irreconciliáveis. (Aqui se usa o termo Taxonomia Numérica no seu sentido mais restrito, incluindo, aí, apenas a escola que, posteriormente, veio a ser chamada de Fenética. Originalmente, o termo se aplicava a qualquer conjunto de procedimentos taxonômicos que empregasse algum tipo de método numérico e incluía, assim, também a Sistemática Filogenética ou Cladística). 

 

Os métodos da Taxonomia Numérica foram primeiramente empregados e formalmente descritos em três artigos científicos publicados no final da década de 1950 (Michener & Sokal, 1957; Sneath, 1957; e Sokal & Michener, 1958). Posteriormente, os princípios e métodos desta escola foram consolidados em um livro (Sokal & Sneath, 1963).  Os taxonomistas numéricos consideravam, como o principal problema da Taxonomia Evolutiva, a tentativa de basear classificações em hipóteses evolutivas arbitrárias. Eles acreditavam que a única evidência objetiva, com base na qual se poderia reconstruir as relações filogenéticas entres os organismos, seriam os fósseis. Contudo, como o registro fóssil é muito incompleto (veja mais sobre isto aqui), eles achavam que a reconstrução da filogenia era impossível. Para eles, portanto, não havendo como propor hipóteses objetivas para as relações entre os organismos, as classificações deveriam basear-se apenas nas relações de similaridade (ou relações fenéticas*) entre os seres vivos. Este é, então, o princípio básico e a principal distinção entre a Fenética e as demais escolas contemporâneas da sistemática: a decisão formal de desvincular a classificação das relações evolutivas. Por isto, taxonomistas numéricos não se preocupavam com a natureza dos táxons incluídos em suas classificações, que poderiam, então, ser monofiléticos, parafiléticos ou polifiléticos. 

 

Para taxonomistas numéricos, os sistematas deveriam maximizar o poder de predição das classificações, construindo táxons que reunissem organismos mais semelhantes entre si do que a qualquer organismo em outro táxon. Para isto, eles preconizavam o emprego do maior número possível de caracteres e que esses caracteres fossem considerados, todos, igualmente importantes. Neste aspecto, a escola Fenética se diferencia muito da Taxonomia Evolutiva (ou Gradista), que selecionava um número restrito de características 'evolutivamente relevantes' para, com base nelas, construir suas classificações. Para os taxonomistas numéricos, a definição da relevância evolutiva de cada caráter era uma decisão arbitrária e subjetiva e, portanto, indesejável. 

 

Na construção das classificações, os taxonomistas numéricos achavam que, em vez de se considerar um caráter de cada vez para avaliação da similaridade entre dois táxons (por exemplo: cinco dedos ou três dedos; com ou sem asas, etc), todos os caracteres deveriam ser avaliados ao mesmo tempo, para estimar o que eles chamaram de similaridade total (em inglês, overall similarity). Obviamente, isto é uma tarefa impossível de se fazer de cabeça, enquanto se examinam os exemplares. Por isto, os taxonomistas numéricos desenvolveram métodos matemáticos (daí o nome taxonomia numérica), executados com auxílio de computadores. O método empregado pelos taxonomistas numéricos pode ser resumido nos seguintes passos:

  • Levantamento exaustivo e codificação de caracteres: O levantamento de caracteres, independente da escola de pensamento a que se associe o taxonomista, é o primeiro passo de qualquer trabalho de sistemática. A primeira novidade introduzida pela Fenética nesta etapa do trabalho, consequência do empenho em se utilizar o maior número possível de caracteres, é que este levantamento, agora é exaustivo - o taxonomista não vai se contentar em encontrar umas poucas características que possibilitem distinguir os táxons estudados, ele vai buscar tantos caracteres quanto ele for capaz de encontrar. A segunda novidade, aqui, é que os caracteres são codificados numericamente, de forma a serem empregados em análises matemáticas.

  • Construção de uma matriz de caracteres: na matriz de caracteres, cada linha representa uma espécie e cada coluna, um caráter. Em cada célula da matriz, é lançado o código numérico que representa o estado de um caráter em uma espécie (por exemplo, a cor dos pelos da espécie 'A'). Cada linha da matriz, então, contém uma descrição codificada de uma espécie.

  • Construção de uma matriz de similaridade (ou dissimilaridade): o taxonomista seleciona um índice de similaridade (ou dissimilaridade) e emprega a fórmula desse índice para calcular estimativas das similaridades globais entre cada par de espécies com base nos dados da matriz de caracteres. Essas similaridades são lançadas em uma matriz de similaridade, em que as linhas e as colunas representam as várias espécies que estão sendo comparadas. Nesta matriz, então, cada célula vai conter um valor numérico que representa a similaridade entre duas espécies (não desanime, isto é mais simples do que parece - veja o exemplo no link abaixo!)

  • Aplicação de um algoritmo* de agrupamento: Os valores na matriz de similaridade são empregados em uma sequência de operações definida previamente para agrupar os táxons. O resultado deste agrupamento, em geral, é representado em um diagrama chamado fenograma*.

  • Definição dos táxons a serem nomeados na classificação: Com base nas relações fenéticas representadas no fenograma, o taxonomista define os táxons que ele vai considerar em sua classificação. Em geral, esta definição baseia-se em limites mínimos de similaridade entre os membros de um táxon (p. ex.: as espécies que vão constituir um gênero têm que ter uma similaridade mínima de 60%; os gêneros que vão compor uma família devem ter uma similaridade mínima de 40% etc).

 

Veja um exemplo simples da aplicação da metodologia fenética, aqui.

Se você leu os passos do método fenético e acompanhou o exemplo apresentado no link acima, deve ter percebido que alguns pontos subjetivos do trabalho do taxonomista evolutivo foram removidos pela taxonomia numérica: 1) não há uma escolha subjetiva e arbitrária de um número restrito de caracteres 'evolutivamente relevantes' para neles basear a classificação; 2) a avaliação da semelhança entre os táxons é feita com base em um índice matemático que considera todos os caracteres de uma vez, sem que sejam dados, subjetivamente, a eles, diferentes pesos (graus de importância); e 3) o agrupamento é feito com base em um algoritmo pré-definido, e não de forma arbitrária, segundo opiniões subjetivas do taxonomista sobre possíveis relações evolutivas.

Desta forma, parece que a Taxonomia Evolutiva cumpriu com o seu objetivo. Contudo, é preciso notar que, por trás desses procedimentos, há algumas decisões igualmente arbitrárias: 1) A escolha do índice de similaridade, já que há inúmeros índices sugeridos na literatura e não há nenhum princípio biológico que nos permita decidir, objetivamente, qual índice é o melhor; 2) A escolha do algoritmo de agrupamento, já que, da mesma forma, há vários algoritmos disponíveis e não há como definir, objetivamente, qual produz os melhores agrupamentos. Portanto, a subjetividade nos procedimentos taxonômicos foi transferida da seleção e ponderação (pesagem) de caracteres e da tentativa de se refletir uma hipótese subjetiva de relações evolutivas para a seleção de índices de similaridade e métodos de agrupamento.

A subjetividade na escolha de métodos foi uma das críticas levantadas contra a Fenética, mas há outras de fundo teórico. Desde que seus princípios começaram a ser divulgados, a principal crítica ao método foi a dissociação entre a taxonomia e a evolução. Um dos argumentos, apresentados por Willi Hennig, por exemplo, foi: Se a evolução é o grande paradigma da biologia contemporânea e se nada pode ser compreendido na biologia, se não à luz da evolução (uma afirmação feita, previamente, por Dobzhansky), então, que utilidade haveria em se fazerem classificações que não reflitam, de alguma forma, a evolução?

Outro argumento levantado foi: Em toda família, temos primos que se assemelham mais entre si do que aos seus próprios irmãos; nem por isto, nós tratamos esses primos como irmãos, porque as relações de parentesco dependem das relações genéticas definidas pelo compartilhamento de ancestrais mais ou menos distantes e não da semelhança em si mesma.

Esses argumentos, contudo, não resolviam o problema levantado pelos taxonomistas numéricos: se não temos um método objetivo para definir as relações evolutivas, então, classificações baseadas em hipóteses construídas de forma arbitrária podem estar tão distantes ou mais das relações evolutivas reais, quanto classificações baseadas apenas na semelhança. Como veremos no tema sobre a Sistemática Filogenética, foi exatamente este problema que Willi Hennig começou a resolver.

À medida em que as ideias da Sistemática Filogenética se popularizaram, a Taxonomia Numérica foi paulatinamente abandonada. Contudo, ela foi responsável por algumas contribuições importantes à Sistemática e outros campos da biologia:

1) Consolidação da preocupação com o rigor no trabalho taxonômico;

2) Valorização do emprego de grandes números de caracteres;

3) Desenvolvimento e popularização de métodos que, embora pouco úteis na sistemática atual, deram origem a um novo campo da estatística - estatística multivariada - largamente empregado em outras áreas das ciências biológicas.

 

Vocabulário

  • Algoritmo: uma sequência de instruções que, seguidas na ordem, conduzem à solução de um problema. Receitas culinárias são algoritmos simples; programas de computadores são algoritmos (mais ou menos) complexos.

  • Diagrama: representação gráfica simplificada de uma ideia; esquema.

  • Emergente: que surge, em desenvolvimento, algo novo que tem grande potencial de desenvolvimento.

  • Fenético: relativo à similaridade (semelhança) fenotípica.

  • Fenograma: um diagrama em forma de árvore (dendrograma) que representa as relações de similaridade fenotípica entre vários táxons.

  • Fenotípico: relativo ao fenótipo.

  • Fenótipo: conjunto de características observáveis de um organismo (morfológicas, fisiológicas, comportamentais etc), resultantes da interação entre seu genótipo e o ambiente.

  • Genótipo: a totalidade de genes de um indivíduo.

  • Paradigma: modelo, padrão.

Bibliografia

  • Michener, C. D. & Sokal, R. R. 1957. A quantitative approach to a problem in classification. Evolution 11(2):130-162.

  • Sneath, P. H. A. 1957.The Application of computers to taxonomy.Journal of General Microbiology 17:201-226.

  • Sokal, R. R. & Michener, C. D. 1958. A Statistical Method for Evaluating Systematic Relationships. The University of Kansas Science Bulletin 38(22):1409-1438.

  • Sokal, R. R. & Sneath, P. H. A. 1963. Principles of Numerical Taxonomy. Freeman.

Este tema continua em:
"Escolas Contemporâneas: 
cladística"
Este tema começou em:
"ESCOLAS CONTEMPORâneas: gradista"
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