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ANTIGUIDADE A LINEU

Motivações para construção de classificações biológicas

Como vimos anteriormente, em tempos remotos, as necessidades das sociedades humanas, com relação a um sistema de referência para os seres vivos, eram inteiramente preenchidas pela linguagem. Os vários povos, em suas línguas, distinguiam e nomeavam as 'espécies' de plantas e animais mais importantes para sua sobrevivência e agrupavam essas 'espécies' em conjuntos que recebiam nomes coletivos (por exemplo: ipê-amarelo, jacarandá e pitangueira são 'espécies' de um grupo mais inclusivo, 'árvore') (a palavra espécie está sendo usada entre aspas, porque as entidades nomeadas em nossa linguagem nem sempre correspondem às espécies reconhecidas pela biologia. Assim, frequentemente, referimo-nos às baratas como se fossem uma só espécie, o que não é verdade - existem milhares de espécies desses insetos!). Contudo, com o desenvolvimento da busca do conhecimento como atividade intelectual autônoma (primeiro na filosofia*, depois na história natural* e, atualmente, na ciência), diferentes sistemas de classificação biológica foram propostos. Como aponta Mayr (1998), duas motivações têm levado os estudiosos a construir classificações:

 

1) Organizar os seres vivos em sistemas que os ajudassem a entender e demonstrar a 'ordem da natureza';

 

2) Elaborar sistemas que servissem como ferramentas para a identificação dos seres vivos. 

 

Não é difícil entender as razões práticas para se buscar um sistema que facilite a identificação dos organismos, mas o que seria essa 'ordem da natureza'?

Se, por exemplo, tentarmos organizar os vários tipos de árvores encontrados em uma floresta, considerando suas características morfológicas, a primeira sensação que teremos é de que essas características foram distribuídas inteiramente ao acaso entre as várias espécies de árvores. Assim, se considerarmos o tipo de folha, a árvore "A" poderia parecer mais com a árvore "B", mas se olharmos o tipo de casca dos troncos, a árvore "A" já poderia ser mais parecida com a "C", e assim por diante. A impressão é de caos. No entanto, se insistirmos neste exercício, vamos ter a sensação de que, por trás desta confusão, existe alguma ordem, algum tipo de organização. A percepção intuitiva e subjetiva* da existência desta ordem desafiava o entendimento dos antigos estudiosos que buscavam compreender melhor o mundo em que viviam. Neste sentido, as classificações biológicas poderiam ser construídas de tal forma que refletissem e demonstrassem esta ordem.

Classificações, da Antiguidade à Renascença

A classificação biológica mais antiga que conhecemos foi proposta pelo filósofo* grego Aristóteles (que viveu entre os anos 384 e 322 antes de Cristo). Nesta classificação, Aristóteles procurava explicar como os animais se ajustavam ao mundo, tal qual os antigos gregos o compreendiam (portanto, sua classificação era baseada no seu entendimento da ordem natural e refletia essa ordem). Segundo Mayr (1988) e Ariza & Martins (2010), dois aspectos desta concepção do mundo foram importantes na construção da classificação de Aristóteles:

 

1) A crença de que tudo no mundo era construído a partir de quatro elementos fundamentais (água, fogo, terra e ar) e, também, de que haviam quatro qualidades básicas relacionadas a esses elementos - o calor em oposição ao frio e o úmido em oposição ao seco (entre essas qualidades, o calor - relacionado ao fogo, e o úmido - relacionado à água, eram mais importantes que o frio e o seco);

 

2) A crença em dois mundos que existiriam em paralelo - o mundo ideal e o mundo real. No mundo ideal (ou mundo das ideias), as coisas existiriam em sua forma perfeita - sua essência ou ideia, enquanto no mundo real, as coisas seriam meras cópias de suas essências e, portanto, imperfeitas e sujeitas a se deteriorem. No mundo ideal, tudo o que se pudesse imaginar existiria; no mundo ideal, existiria uma continuidade entre as formas de diferentes objetos, ou seja, entre dois objetos diferentes existiriam inúmeros outros com todas as formas intermediárias possíveis (lembre-se: bastaria que pudéssemos imaginá-los para eles passassem a existir naquele mundo...)

 

A classificação proposta por Aristóteles foi a escala natural que ordenava os animais linearmente, desde os seres mais imperfeitos até os mais perfeitos (no topo dos quais estaria o ser humano). A definição do grau de perfeição de um animal considerava uma série de características, que incluíam a presença ou não de sangue quente (animais quentes e úmidos seriam mais perfeitos que os secos e frios - terrosos) e o modo de reprodução (vivíparos, ovovivíparos ou ovíparos) etc. A ideia da continuidade, existente no mundo ideal, também estava contemplada na escala contínua, em que qualquer organismo a ser descoberto ou imaginado poderia ser inserido.

Apesar da estranheza que seus critérios de classificação possam nos causar hoje, Aristóteles foi um gênio, muito adiante do seu tempo. Ele foi, por exemplo, a primeira pessoa a dissecar os animais para comparar sua anatomia interna e isto permitiu que ele se tornasse, também, a primeira pessoa de que temos notícia a reconhecer que os cetáceos (baleias, golfinhos etc) não são peixes mas, sim, mamíferos. Como mostrou Martins (2013), muitos dos grupos animais reconhecidos por Aristóteles foram utilizados até bem pouco tempo em nossas classificações. Por exemplo, as divisões dos seres vivos nos reinos Animal e Vegetal e dos animais em sanguíneos e não-sanguíneos - correspondentes aos vertebrados e invertebrados, foram aceitas até o século XX. Alguns dos grupos que ele reconhecia continuam sendo considerados grupos naturais, até hoje, como os peixes cartilaginosos, que ele chamava de 'selachia' (de onde vem a palavra seláceos, às vezes empregada no português para designar esses animais). Além disso, alguns nomes utilizados por ele para designar grupos animais são empregados até hoje em nossas classificações (como malacostracha, por exemplo).

O nível dos estudos sobre os animais declinou drasticamente nos 1500 anos que se seguiram à morte de Aristóteles. Durante este tempo, a qualidade das observações biológicas decaiu e, nas principais obras sobre animais da idade média — os bestiários , seres fantásticos, como unicórnios e dragões, eram tratados lado a lado com os animais reais. Os aspectos biológicos dos animais cederam lugar, também, a um discurso estético e espiritualista contido nas fábulas clássicas, que de certa forma nos influencia até hoje. As 'personalidades' que atribuímos aos animais (o lobo cruel, a raposa astuta, o cordeiro manso, a cobra traiçoeira, etc) são heranças dessas fábulas.

Segundo Mayr (1988), a classificação das plantas parece ter sido pouco elaborada na Antiguidade. Há referências a uma classificação delas feita por Aristóteles em uma obra que ele teria escrito sobre as plantas, mas nenhuma cópia deste livro ou descrição desta classificação sobreviveu até os nossos dias. Teofrasto, um discípulo de Aristóteles, agrupou as plantas de acordo com características morfológicas, como sua forma de crescimento (árvores, arbustos, subarbustos e ervas) e a presença ou ausência de espinhos, mas elas serem ou não cultivadas e o emprego que nós dávamos a elas também eram critérios importantes nesta classificação. Contudo, ainda segundo Mayr (1988), foi a classificação das plantas segundo seu uso prático, feita por Dioscórides (+/- 60 a.C.), que se sobressaiu como a principal classificação da Antiguidade, tendo sido utilizada durante cerca de 1500 anos, até a Renascença.

O retorno à observação dos organismos e a volta do interesse na sua classificação e identificação, principalmente de plantas, ocorreu entre o final da Idade Média e a Renascença, principalmente após o início dos grandes descobrimentos e o surgimento da imprensa — período dos 'herbalistas'*. Mas os herbalistas não se preocupavam propriamente com a classificação das plantas, seu interesse se restringia mais às propriedades de espécies individuais. Em suas obras, as plantas podiam ser apresentadas em ordem alfabética ou em sequências arbitrárias. Apenas um vago reconhecimento existiu, neste período, sobre tipos (espécies) e grupos (gêneros) e poucas foram as tentativas de se estabelecer táxons superiores (mais abrangentes).

As grandes navegações e a sistemática

No ano de 1453, os turcos tomaram a cidade de Constantinopla (hoje, chamada de Istambul), pondo fim ao Império Romano do Oriente (também chamado de Império Bizantino). Com isto, eles passaram a controlar as rotas comerciais entre a Europa e a Ásia.

A queda do Império Romano do Oriente impulsionou de duas formas distintas o avanço da sistemática na Europa: Em primeiro lugar, a fuga de filósofos bizantinos para a Europa levou à difusão e ao renascimento dos valores culturais da antiguidade greco-romana naquele continente, com a valorização do conhecimento e sua busca. Muitos desses filósofos tornaram-se professores das famílias nobres e dos grandes comerciantes europeus. Por isto, a filosofia clássica que fora estudada apenas nos mosteiros católicos durante toda a Idade Média, pode se disseminar um pouco mais pela sociedade europeia. Em segundo lugar, a súbita interrupção das rotas comerciais com a Ásia e o encarecimentos dos produtos vindos daquele continente, estimularam a busca de rotas alternativas, pelo mar, para o Oriente, levando ao início das grandes navegações que, por sua vez, colocaram os europeus em contato com uma enorme diversidade de espécies previamente desconhecidas por eles, nos continentes que eles viriam a descobrir. Considerando que a Europa é o continente que possui a biota mais pobre entre todos os continentes da Terra (exceto a Antártida, permanentemente coberta de gelo), é fácil imaginar o espanto causado pela riqueza em espécies dos 'novos' continentes sobre os exploradores europeus.

É preciso compreender que uma das principais motivações para essas navegações era a importação, para a Europa, de produtos da biodiversidade asiática (como a seda, a canela, o cravo, a noz moscada), e que os navegantes europeus estavam atentos à descoberta de novas plantas e animais que eles pudessem explorar como fontes de alimento e outros produtos. As embarcações europeias retornavam de suas longas viagens, abarrotadas de exemplares de plantas e animais exóticos, muitos dos quais causaram mudanças drásticas nos hábitos de alimentação europeus e se tornaram fontes importantes de riqueza. Podemos citar, como exemplo, a batata, que foi levada da região andina da América do Sul e se tornou a principal fonte de carboidratos para a população europeia. Outros exemplos de plantas importantes levadas das Américas para a Europa foram o girassol e o tomate. Um grande movimento de introdução de plantas entre os continentes tropicais também ocorreu. Assim, por exemplo, a cana-de-açúcar, trazida da Ásia para a América do Sul, tornou-se uma das principais fontes de riqueza para Portugal, no Brasil; e a mandioca, cultivada pelos índios sul-americanos, foi levada daqui e, hoje, é extensamente cultivada em países da África e da Ásia.

 

Ao longo deste período, tornou-se comum a inclusão de naturalistas na tripulação dos navios. Esses naturalistas se dedicavam à obtenção e ao estudo de exemplares das floras e faunas dos 'novos' continentes. Além deles, coletores profissionais, nos vários continentes, se dedicavam a coletar, preparar e enviar, aos museus e jardins botânicos da Europa, exemplares da fauna e da fauna dos continentes recém descobertos pelos europeus. É interessante destacar que o Brasil foi relativamente pouco explorado entre os séculos XVI e XVIII, pois a coroa portuguesa concentrou seu interesse nas riquezas minerais do país e pouco investiu no conhecimento de nossa biodiversidade. A única expedição de um naturalista patrocinada pela coroa portuguesa pelo território brasileiro foi a de Alexandre Rodrigues Ferreira, pelas regiões Centro Oeste e Norte do país, entre 1783 e 1792. As amostras colhidas por ele foram enviadas a Lisboa, mas não foram estudadas, até que o exército de Napoleão invadisse Portugal e esses exemplares fossem enviados para o Museu de Paris, como espólio* de guerra. Como a entrada de estrangeiros no Brasil era proibida, também os naturalistas de outros países europeus só tiveram acesso à nossa biodiversidade, depois que D. João VI abrisse os portos brasileiros às nações amigas, em 1808. Só a partir daí, naturalistas europeus (e, posteriormente, dos Estados Unidos) percorreram o Brasil, coletando amostras de nossa fauna e flora. As mais importantes dessas expedições talvez tenham sido as do francês Saint-Hilaire (entre 1816 e 1822) e dos alemães Martius e Spix (entre 1817 e 1820).

"Retorno de escravos de um naturalista"

O pintor francês Jean Baptiste Debret, que pintou a aquarela ao lado, morou no Brasil entre 1816 e 1831.Ele relatou que muitos naturalistas amadores brasileiros e o Museum Imperial de História Natural (hoje Museu Nacional da UFRJ) mantinham escravos que permaneciam meses nas florestas coletando material para suas coleções.Também os naturalistas estrangeiros usavam escravos como guias e coletores em suas expedições pelo território brasileiro. Muitos desses escravos foram libertados posteriormente e passaram a atuar como coletores profissionais, vendendo os exemplares que obtinham para colecionadores brasileiros e estrangeiros  (Debret, 1981)

O crescimento explosivo do número de espécies conhecidas, após o início das grandes navegações, estimulou a avanço da sistemática de várias maneiras:

  • Desenvolvimento de técnicas de preservação de exemplares de plantas e animais para estudo. Um dos maiores problemas para o avanço da sistemática, até então, era que os exemplares estudados pelos naturalistas não podiam ser preservados e, por isto, não havia como se confirmar a identidade das espécies a que se referiam os estudiosos do passado.

  • Criação dos museus de história natural e herbários, que passaram a abrigar imensas coleções organizadas de espécimes de plantas e animais de todo o mundo, e a empregar naturalistas para seu estudo. A criação dessas instituições e uma discussão mais aprofundada sobre as coleções taxonômicas é discutida no tema "Coleções Taxonômicas".

  • Busca de métodos mais eficientes de classificação e busca de uniformidade nas classificações. Sobre isto, discutimos um pouco mais, abaixo:

A necessidade de organizar os conhecimentos sobre uma diversidade muito maior do que os europeus jamais imaginaram existir tornou os sistemas arbitrários de classificação empregados, até então, inapropriados para o avanço da ciência, e a busca por métodos de classificação se intensificou. O primeiro método formal para a construção de classificações foi sugerido por Cesalpino (1519-1603), ainda durante o Renascimento, para facilitar a identificação do número crescente de plantas conhecidas. Para isto, ele recomendou o método de classificação decrescente por divisão lógica, descrito por Aristóteles como um método geral de classificação. Segundo este método, um 'gênero' é dividido em duas 'espécies', que se tornam, agora, 'gêneros' que serão divididos, cada um, em duas 'espécies', e assim por diante. A divisão de cada 'gênero' era feita com base em características consideradas fundamentais para os objetos classificados. Este método gozou de enorme popularidade durante os dois séculos seguintes, devido a:

  • Facilidade de uso como meio de identificação, não exigindo conhecimento prévio das espécies — o sistema começava com alguns grupos facilmente reconhecíveis, árvores ou ervas, por exemplo, que eram sucessivamente divididos em subgrupos com o auxílio de caracteres distintivos.

  • Num período em que a filosofia clássica era bastante valorizada, o fato da divisão lógica ser um procedimento extraído da obra daquele que era considerado o maior filósofo de todos os tempos - Aristóteles - conferia um prestígio especial ao método.

 

O passo mais importante no processo da divisão lógica era a escolha dos caracteres a serem empregados nas divisões dos grupos ('gêneros') em subgrupos ('espécies'), e que deveriam ser caracteres 'fundamentais' para o táxon a ser classificado. A definição de quais seriam esses caracteres fundamentais, obviamente, era inteiramente subjetiva e a escolha de diferentes atributos por diferentes estudiosos levava à obtenção de classificações completamente diferentes, e este se tornou o principal ponto de desacordo entre eles (um exemplo da aplicação da divisão lógica pode ser encontrado aqui).

O método da divisão lógica, embora muito útil como ferramenta para a identificação, não se mostrou útil para uma classificação 'natural' (ou seja, uma classificação que representasse a ordenação natural dos seres vivos na natureza). Uma relação de afinidade entre grupos de organismos (a ordem natural) já era intuída nesta época e, para manter esses grupos nas classificações, o método de divisão lógica, tal como proposto originalmente, era freqüentemente corrompido (embora não explicitamente): numa inversão da ordem do método, em vez de escolher, primeiro, os critérios fundamentais para que os grupos fossem definidos pelo processo de divisão lógica, os organismos eram inicialmente inspecionados e agrupados por 'afinidade', e os caracteres para a divisão escolhidos de forma a preservar esses grupos (notem que, desta forma, os organismos eram, na verdade agrupados, e não, divididos. O reconhecimento deste fato levou ao abandono da divisão lógica como método de classificação. Apesar disto, ele é muito utilizado, até hoje, como ferramenta de identificação, sendo o método empregado na construção de nossas chaves de identificação (veja mais sobre essas chaves aqui).

As contribuições de Lineu e o teocentrismo na ciência europeia

 

Lineu foi um dos naturalistas mais importantes de sua época (se não o mais importante deles), tendo se dedicado principalmente ao estudo da botânica. Quando ele iniciou seu trabalho, as classificações biológicas já eram predominantemente organizadas na forma de hierarquias*, contudo, nenhuma padronização existia entre elas. Em uma série de publicações iniciadas em 1735, Lineu desenvolveu um sistema hierárquico com níveis definidos (originalmente, espécie, gênero, ordem, classe e reino). Além deste sistema hierárquico (chamado sistema lineano, em sua homenagem), ele propôs, também, a nomenclatura binomial para espécies, segundo a qual, o nome de uma espécie seria composto pelo nome do gênero a que ela pertence, seguido de um epíteto* ou nome específico, que a qualificaria. Seu sistema foi consolidado na décima edição do seu livro Systema Naturae, publicada em 1758. Esta edição é considerada o marco inicial da classificação zoológica moderna, enquanto a edição de 1753 de outro livro seu, Species Plantarum, é considerado o marco inicial da taxonomia botânica moderna. As obras de Lineu tiveram grande aceitação e seu sistema de classificação foi rapidamente adotado no mundo ocidental, consistindo, até hoje, mais de 250 anos após sua proposição, a base de nossa classificação biológica (mais detalhes sobre o sistema lineano serão apresentados no tema "Nomenclatura Biológica".

Páginas de rosto das obras de lineu

Páginas de rosto dos livros Species Plantarum (espécies de plantas) e Systema Naturae (sistema da natureza), publicados por Lineu em 1753 e 1758, são, respectivamente,  os marcos iniciais da taxonomia botânica e zoológica.

Aparentemente, o próprio Lineu não acreditava que sua classificação representasse uma classificação 'natural' (na realidade, embora o termo, às vezes, fosse empregado na literatura do século XVIII, o seu significado não era claro e, aparentemente, nem o mesmo para diferentes autores). Lineu, como todos os naturalistas ocidentais do seu tempo, acreditava na criação divina, tal qual apresentada na Gênese bíblica, e acreditava que as espécies e, sobretudo, os gêneros eram grupos criados diretamente por Deus. Mas ele próprio não buscava, com sua hierarquia classificatória, um sistema natural de organização da biodiversidade; ele buscava apenas uma forma eficiente de organizar os seres vivos e facilitar sua identificação. Atribui-se a ele a frase: "Deus criou, Lineu organizou".

 

Este apego à Bíblia como fonte primária de conhecimento sobre o mundo natural (um componente do teocentrismo*), representa bem o descompasso, na época de Lineu, entre a biologia e outros ramos da ciências que, originalmente, eram parte da história natural e que já passavam, desde o século anterior, pela chamada revolução científica - uma das consequências mais marcantes do Renascimento. Desde o século XVII, esses outros ramos da ciência estavam adotando métodos objetivos e rigorosos de busca do conhecimento, baseados em evidências, e haviam se libertado das interpretações bíblicas sobre o mundo natural. O embate com a igreja, no século XVII havia levado à condenação à morte de vários pensadores que ousaram contestar as interpretações cosmológicas da igreja. Giordano Bruno, por exemplo, foi executado em 1600 por defender, entre outras coisas, que o universo seria infinito e conteria muitos planetas, e que o Sol seria apenas mais uma estrela; mais de 30 anos depois, Galileu Galilei teve que negar acreditar que a Terra girava em torno do Sol para ser poupado da condenação. Na história natural, contudo, o essencialismo (baseado nas ideias de Platão e Aristóteles e reinterpretado à luz dos dogmas cristãos) e o teocentrismo ainda dominaram até o fim do século XIX. Lineu, por exemplo, teria dito que "Deus criou cada ser com uma finalidade e que caberia aos naturalistas descobrirem que finalidades seriam essas". Já no século XIX, Louis Agassiz (um dos principais defensores do 'racismo científico' e do criacionismo no seu tempo) afirmou que "Deus, como um grande arquiteto, teria um projeto para sua obra de criação e que uma boa classificação biológica revelaria seu projeto para a criação dos seres vivos". Aqui, retornamos à ideia das classificações como ferramentas para entendimento da ordem na natureza. No entendimento de Agassiz, a ordem na natureza seria derivada do refletiria o projeto divino de criação e.refletiria esse projeto.

Vocabulário

  • Epiteto: palavra que se junta a um nome para realçar suas qualidades ou características. No caso das classificações biológicas, o epiteto, em geral, chama atenção para características que ajudam a distinguir a espécie a que ele se refere de outras espécies semelhantes.

  • Espólio de guerra: conjunto de bens (em geral obras de arte, ouro e outros objetos valiosos) tomados de um país inimigo, durante uma guerra.

  • Filosofia: atualmente, seria o campo da ciência que busca o entendimento dos problemas essenciais de nossa existência, por meio da razão. A filosofia atual se ocupa de temas relacionados, por exemplo, à verdade, ao conhecimento, à ética e ao pensamento. Na antiguidade, a filosofia se ocupava da busca do conhecimento em toda e qualquer área do conhecimento humano. Um filósofo clássico podia se ocupar, ao mesmo tempo, de temas tão diferentes quanto matemática, astronomia, política, estética e medicina.

  • Herbalista: estudioso dedicado à pesquisa das propriedades medicinais das plantas (herbalismo).

  • Hierarquia: organização de membros de um grupo em diferentes níveis, de acordo com sua grandeza ou importância. Dois tipos principais de hierarquia podem ser distinguidos: 1) hierarquias excludentes, em que cada membro ocupa apenas um nível ou posto. Um exemplo, aqui, seria a hierarquia militar, em que um indivíduo ou é soldado ou é tenente, por exemplo, não podendo ocupar os dois postos ao mesmo tempo; e 2) hierarquia inclusiva ou includente, em que cada membro ocupa todos os níveis da hierarquia ao mesmo tempo. O melhor exemplo, aqui, é o da classificação biológica, em que cada indivíduo pertence, ao mesmo tempo, a uma espécie, a um gênero, a uma família etc.

  • História natural: termo genérico empregado para se referir a uma ampla gama de áreas do conhecimento, hoje estudadas na biologia, geologia, geografia, ecologia, paleontologia etc.

  • Naturalista: estudioso de uma ou mais das áreas do conhecimento abrangidas pela história natural.

  • Subjetivo: Ideia ou pensamento que exprime apenas as preferências ou opiniões de um indivíduo, sem fundamento em fatos ou evidências.

  • Teocentrismo: Filosofia ou doutrina que considera Deus como o centro de tudo. O teocentrismo está associado às religiões monoteístas (judaica, cristãs e islâmica). No contexto do tema que estamos vendo, destaca-se o fato de o teocentrismo cristão, dominante na Europa até a Renascença, considerar a Bíblia como a única fonte confiável de informação sobre o mundo natural. De acordo com esta concepção, baseada numa interpretação literal da Bíblia, todo conhecimento trazido pela ciência, se contradissesse as sagradas escrituras, seria falso, mesmo se baseado nas mais fortes evidências e em fatos incontestáveis.

Bibliografia

Este tema dá sequência a:
"classificação biologica"
Este tema continua em:
"Evolução e sistemática"

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